Tempestade



          Marcos, um cinqüentão charmoso, bem apresentável, cabelos grisalhos minuciosamente penteados, barba perfeitamente aparada, recém divorciado e sem filhos. Acorda todo dia por conta própria dez minutos antes que o despertador toque, freqüenta os mesmos lugares, percorre os mesmos trajetos.
Planeja comprar um pequeno sítio onde tem a intenção de refugiar-se tão logo se aposente, sonho que sempre foi somente seu. Ainda não se deu conta do divórcio, provavelmente porque sua rotina pouco tenha mudado depois da partida de Sônia. Talvez a sua mulher, agora ex, fosse mesmo invisível como ela afirmava nas discussões do casal e, por isso, ainda não tenha sentido sua falta.
Sônia casou-se jovem e muito apaixonada. Ao longo dos anos, esforçava-se para agradar Marcos e atribuía as explosões do marido ao trabalho estressante, tentando justificá-las para si e para os amigos.
Negava-se a enxergar que Marcos sempre foi uma pessoa-tempestade, daquelas que subitamente tornam qualquer clima pesado e, sem aviso prévio, dissipam a leveza e a alegria dos bons momentos.  Bastava perder, ainda que momentaneamente, o controle – dos seus compromissos, do sabor da pizza, do destino da próxima viagem, do cartão de crédito – para fazer chover em quem cruzasse seu caminho.
O barzinho escolhido pela maioria para o happyhour da empresa não foi aquele que apresentou aos colegas na comemoração de seus quarenta e oito anos, onde passaram a ir toda última sexta-feira do mês? Pronto! Ventos, trovoadas, torrentes de água e aí salve-se quem puder. Não haveria piada engraçada ou chopp gelado suficientemente hábeis para salvar a noite.
Sônia cansou-se das recorrentes tempestades, aposentou o guarda-chuva velho que carregava consigo mesmo nos dias mais ensolarados, vestiu-se de arco-íris e partiu.

Comentários

  1. Adorei a imagem da pessoa-tempestade e o fato de Sônia aposentar o guarda-chuva e se vestir de arco-íris! Adoraria saber mais de Sônia!

    ResponderExcluir
  2. �� interessante por que ele não se deu conta do divórcio...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada pelo comentário, Welbio! Marcos estava sempre tão focado em si mesmo, de modo que, para ele, Sônia não passava de uma coadjuvante.

      Excluir
  3. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Mais lidos

Que privilégio é poder voar!

Uma ou duas tranças